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SÉRIE 2 - #1

30out2021 10h10

Desejo no que foi mato

Estreou o episódio com o bailarino e coreógrafo Marcelo Evelin. Um Rádio na Paisagem é um podcast concebido e dirigido pelo coreógrafo Gustavo Ciríaco, com produção da Dos Voos. Para escutar, basta clicar em algum dos ícones abaixo, ou visitando a página Sesc Avenida Paulista.

Redação: Priscila Maia
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No primeiro episódio da segunda série do podcast Um Rádio na Paisagem, o convidado é o bailarino e coreógrafo Marcelo Evelin, figura incontornável na cena da dança contemporânea brasileira. Durante a conversa, eles falam sobre o caráter congregador da poética de Evelin, conhecido por suas peças para muitos corpos, sempre diversos e em embate com os ditames do belo, que criam verdadeiras paisagens humanas em vertigem de desejo e de vida.

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Marcelo Evelin, em Ai, Ai, Ai, apresentada na Fondation d'entreprise Galeries Lafayette (Paris), em setembro de 2021| Foto: Marc Domage

Calor

Marcelo Evelin vive e trabalha entre Teresina, cidade onde nasceu, e Amsterdã, onde trabalha, desde 1999, vinculado à Escola Superior de Artes de Amsterdã. No momento da entrevista, era Gustavo quem estava em Amsterdã, enquanto Marcelo em sua casa no Piauí, ao redor de plantas, um climatizador e objetos que considera talismãs. "São um pouco mais de dez horas da manhã, e faz já um calor acima de 30 graus". Principalmente entre setembro de dezembro, época que mais faz calor, é inviável estar em Teresina sem a permanente presença artificial do vento.

 

Na peça Ai, Ai, Ai, criada em 1995 e parte ativa do repertório do coreógrafo, a cena inicial atualiza a produção analógica do vento: ao som de cigarras, usando salto alto e peruca longa e lisa, Marcelo abana um leque de penas brancas, enquanto caminha em um ritmo dissonante ao seu gesto de mão. Mais para frente, ele repete o movimento de abanar, desta vez com as mãos, já vestido de 'homem cis', com calça e paletó pretos.

 

Ai, Ai, Ai traz uma coleção gestual de refrescamentos, desde à alusão às lavadeiras de rio, quanto ao banho de cuia. A partir de uma operação plástica que prima pela síntese e afirma as forças primais do corpo, os trabalhos de Marcelo remetem à terra da qual sente falta, mais especificamente o sertão do Piauí. Ao mesmo tempo, seu recorte valoriza a simplicidade do enxuto - por exemplo, quando ele só usa as cores preto e branco na cena de Ai, Ai, Ai. O calor se faz visível inclusive na imobilidade de Marcelo. Ele é vento quente, e tem olhar de flecha. Nesta peça, ele troca de cena com uma atitude ligeira, o que nos demanda consecutivos realinhos. 

Lavadeira, de Sel Vargas | Foto: Tasso Marcelo/Diadorim Ideias

Quadro Lavadeira, de Sel Vargas.jpeg

Praia Vermelha

Com menos de dois anos de idade, a família Evelin se mudou para o Rio de Janeiro, para uma temporada sem data de fim. Estevam Teixeira, seu pai, era militar da ativa, e por isso a família foi transferida para o bairro da Praia Vermelha, na Urca. É a primeira lembrança de paisagem que Marcelo tem memória.

 

A família Evelin chegou no Rio dias antes do golpe militar de 64. Só se falava disso, é o que Marcelo lembra vagamente. Mais vívida é a lembrança do cheiro do mar, que por estar entre dois morros - o Babilônia e o Pão de Açúcar -, adensa-se com a curva. Já adulto, quando voltou a visitar a Praia Vermelha, Marcelo quase desmaiou, tão forte foi a atualização desta lembrança.

 

Depois da Praia Vermelha, onde viveram por sete anos, os Evelin se mudaram para Carolina, cidade ao sul do Maranhão, marcada pelo cerrado e pelas cachoeiras. O pai de Marcelo recebeu uma nova missão: trabalhar na construção de um pedaço da BR-230, mais conhecida como Rodovia Transamazônica, obra inconclusa a qual Marcelo se refere como "aquele fracasso nacional". 50 anos depois de sua inauguração, a rodovia é marcada pelo chão de terra, com muitos trechos que pouco mudaram ao longo do tempo.

 

Fizemos uma playlist sobre a história e o presente desse 'fracasso'. Confira aqui, veja os fatos, e chegue à suas próprias conclusões.

Carolina

É de Carolina a maior parte das lembranças de infância de Marcelo. Foi apenas um ano morando lá, mas justo quando ele descobriu a dança e o teatro. "Eu me lembro de já aí montar teatro na lavanderia das casas. Tinha um grupo de amigos que eu ensaiava. Então, já fazia propostas de encenações, pegando lençóis, e cortando papéis, e fazendo toda uma visualidade teatral". 

Também diz lembrar da Transamazônica, por conta das viagens de bimotor que fazia com o pai. Pousavam no meio da mata fechada, e em seu imaginário, habitam cheiros fortes e bichos à espreita. "Tenho memórias muito teatrais desse período. Acho que foi aí que, de alguma maneira, a coisa começou". Essa 'coisa' que ele menciona são 41 anos de dança, e mais de 50 coreografias.

Este ano, a diretora Luiza Sobral e a produtora Respira Filmes lançaram o documentário DESTRAVE: um olhar sobre a criação de Marcelo Evelin na dança contemporânea, que estreou na Balada Literária do Piauí. Veja o minidoc aqui. 

RuPaul

Marcelo se considera dono de uma formação "toda quebrada" - leia-se 'formado pela vida'. Em 1986, foi estudar dança e coreografia em Paris, e teve a oportunidade de trocar artisticamente com os diretores-coreógrafos Philippe Decouflé, Josef Nadj e Karine Saporta. Em 1988, migrou para Amsterdã, onde foi aluno da School for New Dance Development (SNDO) e integrou a Companhia de Dança-Teatro The Meekers, de Arthur Rosenfeld. Antes de se lançar no mercado independente de coreografia, ainda teve o privilégio de estagiar na Tanztheater Wuppertal, dirigida, na altura, pela imensa e única Pina Bausch.

Foi o inverno de Nova Iorque que transformou Marcelo em um coreógrafo com sua própria companhia (ou algo parecido com isso). Era 1995, e a cidade dos sapatos vagabundos mostrou para o então jovem de 33 anos que, se ele queria viver de dança, precisava restruturar seu posicionamento. Nascia ali a Demolition Inc., 'um lugar-situação-de-trabalho', durante o processo de criação de Ai, Ai, Ai, meio a um processo de apaixonamento de Marcelo, que se mudou para a cidade por amor. Um ano antes, Febril, peça que abordava de forma poética o tema HIV/AIDS, o levou pela primeira vez à Nova Iorque. Sentiu uma forte conexão com o dinamismo da cidade, que o fez aplicar e conseguir uma subvenção do governo holandês, e logo partir para a ilha, com o intuito de se renovar. Valeu a pena. Com Ai, Ai, Ai, Marcelo já fez mais de 80 apresentações, e ganhou o Prêmio de Prata das Artes na Holanda, como intérprete e coreógrafo.

"Eu tomei a decisão também de não trabalhar a partir de uma ideia fixa, de uma coisa que se relacionava às vezes à literatura, ou às artes visuais. Eu até então trabalhava com uma ideia, um princípio, assim, muito claro para começar as obras, e eu queria romper isso. Eu queria fazer uma peça a partir do nada, e que fosse para um lugar completamente desconhecido para mim". 

 

A cena das drag queens, que na década de 90 estava no auge com o movimento voguing, impressionou Marcelo, que se deixou levar pelo tema da identidade de gênero. "Me lembro de ver RuPaul, no início de carreira, fazendo apresentações em pequenos bares, no East Village". Ai, Ai, Ai é sobre a saudade de Marcelo da infância e do Brasil, mas sua aparência está para sempre ligada à Nova Iorque. Até hoje, mantém em cena os mesmos objetos de 26 anos atrás, achados e comprados nas lojas nova-iorquinas.

Misty and Jimmy Paulette in a taxi, NYC, 1991 | Foto: Nan Goldin

Demolição

Com o companheiro, o criador de arte John Murphy, e com a bailarina Anat Geiger e o técnico de som Jaap Lindijer, em 1995 foi criada a Demolition Incorporada, que nessa época se chamava Demolition Inc. A ideia era promover contextos propícios à colaboração entre artistas, de forma a praticar modos de criação que associassem autonomia à coletividade. 

No site da Demolition, podemos descobrir que a ideia de demolição vem "desse processo complexo e absolutamente coreográfico usado na demolição de edifícios": dinamitar as estruturas. "A ideia de demolição não tem nada a ver com destruição. Ela tem a ver com retirar o volume de um certo espaço para colocar um outro, que vai vir novo, que vai propor outra coisa". Marcelo nunca quis congelar nada, seu propósito nunca foi ter uma companhia fixa. As ideias de mobilidade e processo sempre estiveram presentes, por isso ele prefere o termo plataforma. Já sabia que seu lugar é o mundo, ainda que busque e precise de companhias e parcerias. 

 

Como Marcelo enxerga 'demolição' faz Gustavo lembrar do artista norte-americano Gordon Matta-Clark, conhecido pelo caráter de antiarquitetura de sua poética. Na década de 70, criou Building Cuts, uma série de trabalhos em edifícios abandonados nos quais removia partes do piso, teto e paredes, em um processo de dissecação que desafiava a gravidade de forma desorientadora. 

 

Exemplo disso foi o 'corte' que fez para a IX Bienal de Paris (1975): no bairro de Les Halles, que na altura estava sendo demolido, fez grandes buracos em forma de cone em dois prédios próximos ao Centro Georges Pompidou, criando um museu em forma de fresta. O objetivo de Matta-Clark era permitir que os pedestres olhassem para o Pompidou, que também estava em construção. Uma espécie de matrioska da demolição.

 

Outro projeto inovador de Matta-Clark foi o restaurante FOOD, que existiu no SoHo (NY), de 1971 a 1974. Criado como uma ação entre amigos, existiu mais como uma utopia do que como um negócio. Muitas das ideias (avant-garde) promovidas ali - alimentos frescos e sazonais, uma cozinha totalmente aberta para a sala de jantar, e o entendimento de que cozinhar é uma espécie de espetáculo - hoje estão arraigadas nos restaurantes mais hypados do mundo. 

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Gordon Matta-Clark e Gerry Hovagimyan trabalhando no Conical Intersect, para a XI Bienal de Paris (1975) | Foto: Harry Gruyaert / Magnum Photo

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Neve

 

Na fase do 'parto' da Demolition, o coreógrafo estava particularmente interessado em descobrir suas mãos - talvez, demolir seus usos mais comuns. Fazer surgir a dança não de um lugar funcional da mão, e sim de um "lugar mais exasperado". Ele queria produzir vento, "dar pras mãos um lugar quase que do desespero". Gustavo resgasta a imagem longilínea das mãos de Marcelo, que costuma gesticular enquanto fala. 

 

A paisagem de neve marcou a criação de Ai, Ai, Ai, e também o início da Demolition Incorporada. Acima de tudo, a solidão que ela impõe. O isolamento de estar em uma sala de ensaio sozinho provocou nostalgia no coreógrafo. Vieram as imagens da infância em Carolina, e o desejo de falar sobre sua sexualidade, embebidos pelo branco da neve que o inspirava. "Coisas brancas sobre um chão branco, coisas brancas que desaparecem numa imensidão branca". 

 

Na marca do 20'53'', e ainda sobre Ai, Ai, Ai, Marcelo conta sobre a colaboração com o cineasta Karim Aïnouz, seu amigo de infância com quem um dia esbarrou em Nova Iorque. Por coincidência, estavam morando na mesma rua. Marcelo aproveitou para convidá-lo para uma visita à sua sala de ensaio. Karim foi quem filmou em super-8 as imagens projetadas na coreografia, quando ainda dava seus primeiros passos no cinema. 

Abraço

Gustavo faz aproximar De repente ficou tudo preto de gente (2012) e Batucada (2014) ao refletir sobre a personalidade agregadora das peças, ou o que ele chama de "um todo que permite um abraço". São peças que envolvem um grande elenco, e fazem o público compartilhar espaço com os performers. "Meu trabalho realmente é de aglomeração, de ajuntamento. Ele tem uma característica de ajuntar pessoas, de fazer parentesco, de propor dentro desse lugar uma relação mais próxima".

Um braço da plataforma Demolition Incorporada é o CAMPO, um espaço de Residência e Resistência das Artes Performáticas em Teresina, que Marcelo criou, justamente, apostando na "arte da convivialidade". Durante um período, o contexto do CAMPO promove uma mistura entre artistas, para estarem juntos e criarem juntos, de uma maneira bem próxima. 

Núcleo Dirceu

"Foi no Teatro João Paulo II, no início da criação do Núcleo do Dirceu, que para mim parece que a vida bateu com as cores reais. Eu senti na minha pele o mundo chegando". De 2006 a 2015, Marcelo criou e coordenou o Núcleo do Dirceu, assim que voltou a morar no Brasil, depois de 20 anos morando fora.

Foi um choque. Uma tremenda mudança de sensação e paradigma. Sair de uma situação de vida protegida e confortável e cair no Bairro do Dirceu, a maior periferia de Teresina, no então estado mais pobre do Brasil. Entretanto, encontrou uma administração arrojada, que apostou em suas propostas. E no meio de uma pobreza que cravava comportamentos, encontrou uma gente cheia de potência e brilho nos olhos, muito diferente da postura que via nos bailarinos da Europa. 

Tudo isso animou muito Marcelo. Ele viu que daquele senso de urgência conseguiria fazer emergir algo de muito novo - o que de fato aconteceu. O Núcleo Dirceu foi um sacolejo que dinamizou a cena artística de Teresina, fazendo despontar novos artistas, e os colocando em diálogo com o resto do mundo. 

Era uma estrutura horizontal onde todos aprendiam com todos, e ainda se formavam nesse processo. "Eu sinto que meu trabalho saiu dessa redoma de vidro e entrou em uma esfera do real, na esfera do possível, na esfera do que tinha a ver comigo, de uma política do corpo, do confronto, do encontro, do estar ali, do pega pra capar". 

Galpão do Núcleo do Dirceu  | Foto sem crédito

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Toque

 

A experiência no Dirceu foi um ponto de virada na vida de Marcelo. Além de ter adquirido experiência administrativa junto às instituições, seu trabalho ganhou a sensação do toque. "Pra mim, era muito importante trabalhar com proximidade com as pessoas". Não à toa, em 2012, quando criou De repente ficou tudo preto de gente, uma nova relação com o público passou a ser estabelecida em sua poética.

 

Ali, Marcelo fez os espectadores serem tocados e deslocados, com o intuito de "ter um encontro mais direto" com eles. A pesquisa do espetáculo partiu da seguinte pergunta: por que as pessoas se juntam? Motivado pelo livro Massa e Poder, de Elias Canetti, foi atrás da resposta, e chegou em uma massa negra de gente, "tão homogênea quanto singular". Sua intenção era criar uma "paisagem de pessoas, paisagem afetiva", com corpos pintados de pretos e muito pouca luz. "Aquela não era uma coreografia para os bailarinos, era uma coreografia para o público". 

 

O espetáculo foi contemplado com o prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna em 2011, e já foi apresentado mais de 40 vezes, com passagem pela Suíça, Canadá, Coréia do Sul, Alemanha e outros tantos lugares.

 

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De repente ficou tudo preto de gente (2012)  | Foto: Takuya Matsumi

O novo normal

Para 2022, Marcelo está criando uma peça para palco italiano com perspectiva frontal, reaproximando-se de um formato do qual andava afastado. Está buscando mexer com imagens da floresta, mas se diz meio perdido, ainda em experimentação. Muito por conta das implicações que a pandemia de covid-19 impuseram na sociedade, tem se perguntado que tipo de cena é possível e necessária hoje. "Como que a gente volta a olhar para esse espaço cênico? Que tipo de perspectiva a gente pode propor agora com esse mundo tão desequilibrado, tão instavél?".

 

Um pouco entravado nesse dilema, Marcelo tem se aprofundado nas questões sociais que há um tempo o mobilizam. "O que honestamente fazer?". As desigualdades pioraram nos últimos anos, e ele acredita que não dá mais para ficar só fazendo o próprio trabalho, a partir dos próprios princípios e gostos pessoais. "Acho que a gente tem que friccionar cada vez mais essa posição de artista no mundo, e realmente trabalhar pesado para ver o que que a gente precisa agora".

Os Sertões

A terra, o homem, a luta. Durante a Guerra de Canudos, o então jornalista Euclides da Cunha foi convocado pelo jornal O Estado de S. Paulo para ser correspondente do conflito, no interior da Bahia, entre os anos de 1896 e 1897. Acabou escrevendo Os Sertões, o primeiro livro-reportagem brasileiro, cinco anos após a guerra findar. Assumindo um ponto de vista de historiador e ensaísta, o escritor não poupou de duras críticas o Estado Brasileiro. Mais de 25 mil pessoas foram massacradas pelo exército, que alegava estar defendendo a jovem república de forças monarquistas.  

Mais de cem anos depois, o livro inspirou Evelin a criar uma trilogia de peças de dança. A terra, o homem, a luta, as três grandes partes do livro, correspondem às peças Sertão (2003), Bull Dancing (2006), e Matadouro (2010), apresentadas extensivamente em festivais e teatros de todo o mundo. Matadouro continua no repertório vivo da Demolition, agora com um quinteto de cordas tocando ao vivo. 

 

A leitura de Os Sertões, e sua volta ao Brasil, suscitou em Marcelo um orgulho muito forte por ser do Piauí. Diz que, comumente, o associam ao Rio e a São Paulo, ao que responde com (alguma) contestação. Para ele, em Teresina se é duplamente colonizado: pelo eixo Rio-São Paulo, e pelos centros europeus. E por isso, sente-se impelido a lutar contra isso, afirmando a força da precariedade, do calor, do caos, e dos afetos que são dali. Apropriar-se do que ele chama de jeito descomplicado do piauiense. "Menos teoria, menos conversa na cabeça". 

 

Piauí está vivíssima, produzindo o mesmo tipo de arte que sai do Rio, de Amsterdã ou de São Paulo. Marcelo é daqueles que enaltece seu estado e valoriza suas particularidades. Conta que quando visitou o sertão para a pesquisa da trilogia, o que mais lhe impressionou foi o quanto a paisagem é aberta. "Eu fiquei muito encantado com a beleza, com a sofisticação de uma paisagem árida, de uma paisagem de chão cortado, de uma paisagem de árvores que quase não mexem, pois não tem vento. É uma coisa seca, é uma coisa quase desidratada, também de sentido".

Matadouro, no Teatro Municipal Rivoli, no Porto/PT, em 2015  | Foto: José Caldeira

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Tohoku
 

A criação da peça Dança Doente (2017) aconteceu no Japão, a partir da absorção do universo do coreógrafo japonês Hijikata Tatsumi, pioneiro da dança butoh junto com o Kazu Ohno. "Eu comecei a visitar exatamente o Tohoku, que é uma região no Japão que tem as mesmas características do Piauí, quer dizer, é um pouco ermo, um pouco abandonado, é pobre, e é muito frio". A temperatura, entretanto, se assemelha por inversão ao Piauí. 

Tohoku é mais que isso. Marcada pelos vulcões, tem aspecto montanhoso e irregular, e muitos arrozais, que por conta do clima, só dão colheita uma vez por ano. Significa 'nordeste' em japonês, e é uma região que também tem um sotaque bem diferente do resto do país. Hijikata Tatsumi é de Tohoku, e os campos de arroz influenciaram muito o seu trabalho. E o de Marcelo também.

 

Ele viajou para um povoado mínimo de Tohoku e conversou com os agricultores de lá. Conviveu com a paisagem nevada e com os corvos negros, pássaros comuns na região, também presentes na poética de Hijikata - ao que Marcelo se refere como "paisagem móvel". "Tem uma coisa muito bonita nas paisagens nevadas que é o silêncio".  

Torquato Neto
 

Nenhuma novidade a esse respeito. Uma instalação que é também uma constatação. Subterrâneo ao título, uma sensação de que o Brasil estava repetindo o passado, como também sentiu Cazuza, em 1988. Quando Evelin veio ao Rio para uma temporada na Caixa França-Brasil, em 2014, uma sensação de assombro se juntou à homenagem que ele fazia ao poeta Torquato Neto. Também de Teresina, Torquato foi um poeta e letrista influente entre os artistas baianos ao redor da Tropicália. Como citação, escreveu Geléia Geral com Gilberto Gil, e Pra dizer adeus com Edu Lobo. Caetano compôs Cajuína pensando na morte do amigo. Torquato se encheu de tudo e se suicidou, em parte entristecido pelo recrudescimento do Regime Militar. Escreveu o irrefutável "para mim chega", trancou-se no banheiro, ligou o gás e partiu para a eternidade. "​Do menino infeliz não se nos ilumina" ficaram letras, versos, histórias e um filho. 

 

Nenhuma Novidade a Esse Respeito é angustiante. No espaço, três corpos estão imersos em tonéis com água, em referência ao ​​mito lendário do cabeça-de-cuia, popular no Piauí, que vive submerso e só aparece em noites de lua cheia. No site de Marcelo, descobrimos a ligação que o coreógrafo traçou entre a situação que imobilizou Torquato em 1972 e o então ano de 2014, "tempos sombrios em um Brasil que retrocede e pede a volta da ditadura militar". 

 

Torquato vivia nas margens, gostava de não distinguir bem o limite das coisas. Talvez por ser um 'anjo torto' que vivia louco, talvez por ser irrequieto demais. “Estar bem vivo no meio das coisas é passar e, de preferência, continuar passando”. Torquato e Marcelo têm isso em comum. E os poetas estão sempre em movimento, entre a criação e a demolição, imortalizando-se a cada gesto criativo.

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De repente ficou tudo preto de gente (2012)  | Foto: Takuya Matsumi

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Nenhuma Novidade a esse Respeito (2014) | Foto: Demolition Incorporada

Margem

 

Para além de tudo que foi lido até agora, se querem ficar com um último sopro de Marcelo, imaginem a paisagem a qual ele se refere, quando convocado a pensar sobre o lugar que o instiga: "o lugar onde você está antes do desejo de transpor (...) Um homem nu, na margem de cá".

 

Até a próxima paisagem, navegantes!

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The Who of Things (2016) em Bergen, na Noruega | Foto: Helge Hansen

Siga o podcast Um Rádio na Paisagem na plataforma de sua preferência. Todo sábado, tem episódio e texto novos. Só vem!

Concepção, direção artística e entrevistas: Gustavo Ciríaco

Artistas entrevistados: Ana Pi, Bruno Levorin, João Saldanha, Laura Lima, Luciana Lara, Marcelo Evelin, Maya Da-rin e Michelle Moura

Comunicação, produção executiva e redação: Priscila Maia

Edição de som e música: Fabiano Araruna

Web Design e programação visual: Marina Lutfi

Desenhos: Gonçalo Lopes

Administração - Mídias Sociais: Mariana Marques

Produção: Dos Voos – Soluções em Arte e Design

Apoio: THIRD - Amsterdam University of the Arts

Realização: Sesc SP

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