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SÉRIE 2 - #3

13nov2021 10h02

O gesto que escorre na clareira

 Neste episódio Gustavo Ciríaco recebe Bruno Levorin, coreógrafo e filósofo de formação, para uma conversa sobre dança, literatura e política. Um Rádio na Paisagem é um podcast sobre poéticas do espaço, que mergulha nas experiências dos convidados para construir linhas de pensamento no horizonte. Acompanhe o episódio na sua plataforma de áudio preferida.

Redação: Priscila Maia

"Eu esqueci, exatamente, quando foi o início". Do embaralhamento temporal vem a amizade entre Gustavo e Bruno, dois coreógrafos que há muito se admiram. Como o povo Pirahã, que desconhece a precisão dos números, esses dois amigos trocam impressões desde o dia em que se conheceram. Na fala inicial de Gustavo, já aparece algo da natureza íntima de Bruno. Algo entre a lucidez e o sonho, a exatidão e a indeterminação. 

 

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Bruno Levorin | Foto: Thany Sanches

Parede branca

Nascido na cidade de Campinas, Bruno tem 35 anos e mora há anos em São Paulo, ainda que durante a entrevista estivesse em Lisboa (PT). Está na cidade para uma temporada de estudos em dança contemporânea, no Programa Avançado de Criação em Artes Performativas (PACAP) da associação cultural Forum Dança. Com curadoria do coreógrafo português João Fiadeiro, o módulo 2021/2022 ​​tem como ambição "proporcionar diferentes tempos de relação com a investigação artística", envolvendo decisão, colaboração e criação.

Atualmente em Arroios, região central de Lisboa, Bruno está gostando de morar  em um bairro cheio de imigrantes. Faz de sua experiência na Europa algo menos desconcertante. Fechado por conta da entrevista, em seu quarto vê apenas uma parede branca - que de perto, não parece tão branca assim. Traz rabiscos pretos, resquícios de desconhecidos que moraram naquele espaço antes dele. Tão imemoriais quanto suas próprias lembranças do Bairro da República, na zona central de São Paulo, onde também morou por anos. 

Site

"Uma forma de eu organizar muitas notas que eu tinha sobre os meus trabalhos, mas não só. Um campo mesmo de possibilidade de visualização". Desde 2011, Bruno vem ampliando sua visão de cena, de forma a inventar outras perspectivas de leitura para a dança, assumindo outros lugares, "talvez o da literatura". 

 

Procurando aproximar o fazer ao dizer, o cotidiano ao encenado, a dança ao pensamento. Em 2012, entendendo o espaço virtual como matéria a ser esticada, criou o site Puxadinho, junto aos dançarinos Allyson Amaral e Priscila Maia - esta que vos escreve. Na época, haviam ganhado o (extinto) prêmio de pesquisa em dança da Secretária de Estado de Cultura e Economia Criativa - SECEC/RJ, e além da convivência criativa, criaram o site e a peça Desejo que Fuja, cuja pré-estreia aconteceu no Itaú Cultural. O site ainda está no ar, e pode ser encarado como uma coleção permanente, com muitas das referências que nortearam a colaboração entre os três. 

Em 2016, Dizer Fazer nomeou a abertura de processo dirigida por Bruno, compartilhada no evento Ensaios Perversos, da Cia. Perversos e Polimorfos, em São Paulo. Nas palavras de Bruno, os bailarinos Clarissa Sacchelli e Felipe Stocco, mostraram ali "uma coleção de desejos ordinários para desatar os nós que existem entre os verbos". Foi em São Paulo, através de suas colaborações e trabalhos, que Bruno aprendeu a se perder e se encontrar. 

Dizer Fazer e Puxadinho não estão no site do Bruno. Talvez por ser prolífico de mais, ou por estar no presente demais, nem todo o vivido está documentado. Mas isso não quer dizer que as experiências não existiram. "Para mim, não fazia mais tanto sentido, em termos de exposição, apresentar só o trabalho, a peça, no final. Começou a fazer sentido para mim disponibilizar em algum lugar - e esse lugar tem sido o site - todos os momentos do meu processo". 

 

No site, além do óbvio portfólio, você pode encontrar imagens, roteiros, crônicas e afetos, apenas parte da coleção levoriana, em permanente estado de (re)organização.

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Dizer Fazer |  Bailarinos: Clarissa Sacchelli, Felipe Stocco | Foto: Haroldo Saboia

Literatura

"Me interessa talvez produzir uma espécie de partitura, mas não no sentido tão fechado do termo. Uma partitura que coabite o lugar da literatura". O que Bruno quer dizer com isso é que a escrita pode explicitar as relações das ferramentas e dos dispositivos usados para a criação coreográfica, ao mesmo tempo em que dá conta da dimensão poética da leitura. 

 

Uma das setas que Bruno aponta para frente é a de traduzir seus projetos de dança para o formato conto. Esse desafio o instiga, e já foi esboçado na performance não sei por onde começar (2019), apresentada na Galeria Jaqueline Martins para a exposição individual do artista falecido Hudinilson Jr. Como poeta, "acredita na palavra como um monumento de espera, escuta e esperança". Diariamente interessado nas aproximações entre coreografia, dramaturgia e teoria crítica, busca esse estado, ao mesmo tempo, oco e maciço, tolo e agudo.  

 

Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo

Este é o nome do primeiro trabalho dirigido por Bruno Levorin, depois de anos trabalhando ao lado do coreógrafo Cristian Duarte, e de outros artistas da cidade de São Paulo. Parte do encontro com o artista visual Haroldo Saboia, como uma canalização do desejo de investigar práticas coreográficas que discutam a relação entre gesto, nomeação e invocação, em um contínuo processo de escavação entre as palavras e as coisas.

 

Sobre este trabalho, Bruno frisa a importância do Lote, projeto de residência artística coordenado por Cristian Duarte, e desde 2013, sediado na Casa do Povo, no bairro do Bom Retiro, também em São Paulo. Foi neste contexto que pôde se criar como coreógrafo, e também conceber o Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo, com a proteção financeira necessária. 

 

O Lote existiu de 2011 a 2018 e possibilitou que inúmeros artistas, nacionais e internacionais, experimentassem procedimentos e compartilhassem suas práticas de trabalho. Suas cinco edições foram subvencionadas pelo Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, estímulo fundamental para sua (feliz) existência. 

Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo, na Galeria Millan/SP | Bailarina: Clarissa Sacchelli | Foto: Juliana R.

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Ausência

"Eu sinto que, desde o início do trabalho, eu tinha algo que estava me conectando com uma certa noção de ausência". Em 2016, quando criou Aquilo que estamos fazendo e todos estão vendo, Bruno vivia o luto do pai, e se sentia fortemente conectado com uma certa imagem do momento do enterro. Ele viu que "saía uma terra de dentro do chão, para que o caixão dele pudesse entrar dentro desse buraco que foi criado. E eu via que a terra voltava depois para esse buraco, mas parte dela ficava pra fora".

 

A terra que sobrou materializou,"de maneira muito bruta, uma noção de ausência". Essa dimensão tomou conta de Bruno, e marcou a criação de Aquilo, dois anos depois da morte. Infiltrou-se principalmente nas mãos, onde para ele "está circunscrita uma ideia primeira de linguagem, uma pré-linguagem". Resgata o gesto de Adão, que no Paraíso, apontava para as coisas antes de nomeá-las. "Primeiro veio o gesto, depois veio a palavra". Entre gestos e palavras ausentes, houve a possibilidade de comunicação, através da dança, da nebulosa sensação de enterrar um pai. 

 

Gestualidade tem a ver com duração. Necessita do tempo, pois é ele que esculpe o caráter comunicativo do gesto. "A linguagem é insuficiente, e esse é o grande barato dela. Ela nunca vai dar conta de dizer exatamente aquilo que o agente que diz quer que o outro entenda, ou quer que o outro capture".

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Projeto para uma auto-estrada (1970), de Sergio Augusto Campos | Foto: Gabriel de Souza/ Central Galeria

Confissões sem sentido

Projeto em construção, criado do encontro entre amigos, e de certa forma sobre a amizade entre homens - a saber,  Bruno Levorin, Thiago de Souza, Gilmar Frausto e Leo Nabuco. O 'sem sentido' do título é mais que um devaneio. "É na busca por abandonar a arena do sentido que esse trabalho acontece". Em seu site, Bruno conta que Confissões sem sentido é "um jeito de continuar", a partir da vontade de "falar de muitas imagens em voz baixa", como em "pequenas orações" sem começo nem fim, mas com "algum fundo". 

 

Nos vídeos do trabalho, Gustavo vislumbra haver uma camada de sensualidade entre intérpretes e câmera - ou como diz, quando o voyeurismo passa a ser um flerte. E talvez, isso tenha a ver com memórias profundas que em Bruno começaram a aflorar. 

 

Desde que teve contato com a obra de Hudinilson Jr., na ocasião de não sei por onde começar (2019), o tema da masculinidade passou a frequentá-lo, até mesmo em seus sonhos. Não à toa, cita Gilberto Gil, o mais novo imortal do país, mais especificamente sua própria confissão, sobre aprender a beijar homens para além do erotismo. 

Confissões sem sentido tem perfil de diário - filmográfico e textual -, e toca muito na relação que Bruno tem com a própria sexualidade. "Muito confessional, e confessional da esfera da sensação, principalmente". O coreógrafo organiza o trabalho por imagens, e a segunda delas, por exemplo, foi primeiramente sonhada, para depois ser esculpida pelo tempo, assumindo a influência da pintura, "desde os tempos de Caravaggio até o surrealismo". 

 

Criado durante a pandemia, depois de um longo período sem encontrar os amigos, parte de querer produzir dança a partir de memórias sensoriais que tinha vontade de recuperar, mas sem essa ou aquela pretensão. Se houvesse um destinatário, não seriam os ávidos pela lógica do sentido. 

 

Este trabalho faz Gustavo lembrar do cineasta Apichatpong Weerasethakul, mais especificamente do filme Tropical Malady (2004). Dividido em duas partes que não se relacionam diretamente uma com a outra, conta a história de dois jovens amigos tailandeses, um soldado e um trabalhador do campo. O amor entre eles é puro e genuíno, o que inclui expressões e trocas físicas de afeto, mas nada afirma que eles sejam gays. O filme também embaralha as noções de início e fim, trazendo uma temporalidade que nos confunde, assim como fazem os vídeos de Bruno.

Frame de Confissões sem sentido (2020) | Bailarinos: Leo Nabuco e Gilmar Frausto

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Still de Tropical Malady (2004) | Atores: Sakda Kaewbuadee e Banlop Lomnoi 

Dança menor

Convocar duas palavras que criam um paradoxo. Para Gustavo, a gestualidade que Bruno propõe como coreógrafo faz lembrar um oxímoro, por evocar tensão e banalidade ao mesmo tempo. "Eu tenho um interesse muito genuíno pelas pessoas. Eu posso passar muito tempo vendo as pessoas se moverem".

 

Seria esse seu leitmotiv? O movimento qualquer, ou o que Bruno chama de 'dança menor'? Ele gosta de ver as pessoas no cotidiano, ocupadas com as pequenas coisas, "fazendo o que elas fazem todos os dias". Curioso ele ter se transformado em um padeiro de mão cheia, alguém que, com as próprias mãos, faz o pão nosso de cada dia.  

 

"Eu tendo sempre a gostar mais de ver essas pessoas que realmente não têm na sua vida uma construção de corpo que já passou por experiências da dança em um sentido mais institucional". Bruno não conheceu a dança quando criança, muito menos as aulas de dança. Ele toca muitos instrumentos, desenha como poucos e pensa como pouquíssimos. Foi uma criança dos livros e das histórias, e a dança entrou em sua vida como uma forma de permanecer investigando a filosofia de forma prática. É - e foi - um distraído observador. Outro oxímoro para a conta. 

 

Já com vinte e poucos anos, quando estudava filosofia na PUC/SP, descobriu as aulas do CED - Centro de Estudos de Dança -, que aconteciam nas tardes de sexta com a professora Helena Katz, importante crítica e pensadora da dança contemporânea brasileira, dentro do curso de Comunicação das Arte do Corpo. Não era cilada, era amor

"Se eu tivesse uma história conectada ao meu corpo desde pequeno com a dança, talvez hoje eu estivesse fazendo outra coisa". Bruno entende que seu interesse está na construção de uma "ética do fazer" - ou de uma "dança menor" -, no sentido da irrelevância dos gestos que propõe - irrelevância em relação à história oficial da dança. Amarrar ou desamarrar um sapato são gestos irrelevantes, que podem aparecer na poética de Bruno com a mesma legitimidade que uma atitude ou um tour en l'air para Maurice Bejárt.

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não sei por onde começar (2019), na Galeria Jaqueline Martins, em São Paulo | Bailarinos: Gilmar Frausto, Lau e Maitê Lacerda | Foto: Juliana R.

João Cabral de Melo Neto

"Muitas das minhas criações começam a partir de sonhos que tenho, e que organizo em roteiro". Bruno sonha muito, e costuma levar essas imagens para seu fazer artístico. É daqueles que convocam as grandes paisagens para falar das miniaturas, e repousa nesta prática sua incansável fome literária. Considera paisagem um verbo. Acha que "a gente tinha que criar um verbo, 'paisajar'. A noção de paisagem só existe quando ela é conjugada, quando ela é praticada". 

 

"Meus poemas, em vez de pregar, de serem pregação, de recomendar, de dar conselho, ou de qualquer coisa, que eles apenas dessem a ver". Essa frase é do poeta recifense João Cabral de Melo Neto, conhecido por seu rigor e precisão, e também por ser avesso à subjetividade na escrita.

No princípio era a crítica. Tanto João quanto Bruno tiveram a teoria crítica como primeira manifestação de escrita. A escrita poética se tornou práxis através de seus espíritos críticos, que de tão aguçados os levaram para o desconhecido. Cada palavra, ou cada objeto, também é escolhida por Bruno por 'milimetrismo'. João é o poeta favorito de Bruno, e foi graças à sua maneira de escrever que o coreógrafo começou a construir suas próprias paisagens narrativas.

 

Regido pelo signo do cálculo e com ascendente em lapidação, João Cabral foi um prolífico arquiteto das palavras, além de diplomata e autor de obras tão variadas quanto objetivas. Ciente da condição lacunar da vida, diz-se empenhado em deixar o tempo falar mais alto que a inspiração. Alguns de seus poemas demoraram anos para serem terminados. Há certa familiaridade entre esses dois homens. Esperemos que ela esteja apenas começando a se mostrar.

Desenho de Bruno, feito em 2012

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Ainda dá tempo de seguir o podcast Um Rádio na Paisagem. No próximo sábado, publicaremos o último texto dessa leva, mas ano que vem tem mais! Até a próxima paisagem!

Concepção, direção artística e entrevistas: Gustavo Ciríaco

Artistas entrevistados: Ana Pi, Bruno Levorin, João Saldanha, Laura Lima, Luciana Lara, Marcelo Evelin, Maya Da-rin e Michelle Moura

Comunicação, produção executiva e redação: Priscila Maia

Edição de som e música: Fabiano Araruna

Web Design e programação visual: Marina Lutfi

Desenhos: Gonçalo Lopes

Administração - Mídias Sociais: Mariana Marques

Produção: Dos Voos – Soluções em Arte e Design

Apoio: THIRD - Amsterdam University of the Arts

Realização: Sesc SP

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